domingo, 13 de julho de 2008

A LEI SECA


Diversas são as especulações acerca dos reflexos da chamada época Pós-Modernidade sobre o Direito, notadamente o Penal sendo que o paradígma emergente de que as ciências sociais terão de recusar todas as formas de positivismo lógico indubitavelmente, sob o ângulo penalístico, vivencia-se o paradoxo de uma sociedade pós-industrial, fruto de um processo intenso de modernização, premida pela tensão entre a necessidade de expansão do Direito Penal a fim de satisfazer uma sociedade massacrada pelo desmando e, pela falta da acolhida de suas necessidades pelo Poder Público, notadamente o judiciário.
Se tem que em pleno século XXI, o mundo enfrenta nova crise em seus paradigmas ideológicos e estamos presenciando o fim da era moderna com nossos espíritos desiludidos pelas profecias de exaurimento da capacidade explicativa das grandes narrativas ideológicas. Como salienta Fernando Galvão, pregou-se o fim da ideologia, o fim do marxismo e até mesmo o fim da religião, o fim da ciência, o fim da evolução, o fim da história. A pós-modernidade, que a princípio poderia sugerir a superação dos esquemas explicativos dos grandes discursos, ainda não encontrou linhas interpretativas próprias para a melhor maneira de composição social. Ensaiando os primeiros movimentos, a nova era não foi capaz de estabelecer seus paradigmas ideológicos. Não obstante, a temporalidade pós-moderna parece exigir a reconciliação das construções teóricas com a realidade social. A perspectiva concreta para as teorias, no contexto de ausência de novos paradigmas, tem estimulado esforços para a reciclagem de antigas proposições teóricas, de velhas soluções políticas."
A recente Lei 11.705/08 - Lei Seca - veio de uma hora para outra TENTAR reparar o que vai no Código Brasileiro de Trânsito colocando, todavia, debaixo da sola de nossos pés a Carta Magna. Em primeiro plano o CTB não se preocupou em arranhar o Código Penal quando estabelece pena para o motorista que mata no trânsito de forma diferente da pena prevista no CPB como se matar alguem, para o caso de condenação, deve ser levada em conta a forma, não o tipo. Agora o legislador massacra o direito à privacidade deixando de lado, inclusive, o fato de que em matéria penal a Lei mais benéfica deve ser aplicada em favor do acusado.
Um grave equívoco que deve ser evitado consiste em prender em flagrante o sujeito todas as vezes que esteja dirigindo com seis decigramas ou mais de álcool por litro de sangue - que equivale a dois copos de cerveja. A existência do crime do art. 306 pressupõe não só o estar bêbado, senão também o dirigir anormalmente (em zig-zag, v.g.). Ou seja: condutor anormal (bêbado) + condução anormal (que coloca em risco concreto a segurança viária).
Não se pode nunca confundir a infração administrativa com a penal. Aquela pode ter por fundamento o perigo abstrato. Esta jamais. O Direito penal atual, fundado em bases constitucionais, é dotado de uma série de garantias. Dentre elas está a da ofensividade, que consiste em exigir, em todo crime, uma ofensa (concreta) ao bem jurídico protegido. Constitui grave equívoco interpretar a lei seca "secamente". Não há crime sem condução anormal. A prisão em flagrante de quem dirige normalmente é um abuso patente, que deve ser corrigido prontamente pelos juízes.
Em síntese: quem está bêbado (com qualquer quantidade de álcool no sangue, com menos ou mais que seis decigramas) mas não chega a perturbar a segurança viária, não está cometendo crime. Logo, não pode ser preso em flagrante. O agente, nesse caso, sofre as conseqüências administrativas previstas no art. 165 do CTB (multa, suspensão da habilitação etc.), mas não pode ser preso em flagrante, não há que se falar em fiança etc. Claro que o carro fica apreendido até que um terceiro, sóbrio, venha a conduzi-lo. Mas nem sequer é o caso de se ir à Delegacia de Polícia.
A prova da embriaguez se faz por meio de exame de sangue ou bafômetro ou exame clínico. A premissa básica aqui é a seguinte: ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo. O sujeito não está obrigado a ceder seu corpo ou parte dele para fazer prova. Em outras palavras: não está obrigado a ceder sangue, não está obrigado a soprar o bafômetro. Havendo recusa, resta o exame clínico (que é feito geralmente nos Institutos Médico-Legais).
O motorista surpreendido, como se vê, pode recusar duas coisas: exame de sangue e bafômetro. Não pode recusar o exame clínico. E se houver recusa desse exame? Na prática, alguns delegados estão falando em prisão em flagrante por desobediência. Isso é equivocado. Não é isso o que diz o novo § 3º do art. 277 do CTB. Sua redação é a seguinte: "Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo".
Como se vê, o correto não é falar em desobediência, sim, nas sanções administrativas do art. 165 (e mesmo assim, somente quando houver recusa ao exame clínico). A recusa ao exame de sangue e ao bafômetro não pode sujeitar o motorista a nenhuma sanção, porque ele conta com o direito constitucional de não se autoincriminar.
A fiscalização intensa da polícia nos últimos dias veio comprovar que ela é que é fundamental na prevenção de acidentes. É um equívoco imaginar que leis mais duras são suficientes. A fiscalização é que é decisiva, ao lado da educação, conscientização, engenharia e punição.
O legislador adotou a política da tolerância zero, mas ainda há graves falhas na legislação brasileira, que não conta, por exemplo, com o delito de condução homicida (que consiste em dirigir veículo com temeridade manifesta e total menosprezo à vida alheia. Por exemplo: dirigir veículo na contramão numa rodovia).
Há muito ainda que se fazer para aprimorar a legislação brasileira. Temos que declarar "guerra" contra as 35 mil mortes por ano no trânsito. Mas tudo tem que ser feito sem exageros e sem abusos. Não queremos viver perigosamente nas ruas e estradas brasileiras, mas também não estamos dispostos a suportar os excessos do poder público, que só pode atuar legitimamente dentro da razoabilidade deitando por terra a objetividade da Lei que deve ser posta em vigor para a garantia do cidadão e não para inibir o seu Direito.


Nenhum comentário: